Entraram
em casa de João, Isabel descalçou-se à entrada e deixou-se cair no
sofá, exausta de tantas emoções. Demoraram quase toda a tarde na
esquadra, entre declarações, conversas formais e informais, com uma
visita a casa de Isabel para recolha de provas, fotos, impressões
digitais e outros dados importantes para a investigação que se iria
iniciar depois de apresentada a queixa contra Tiago. João
mantivera-se imperturbável, sem recuar nas suas intenções,
exigindo que os polícias olhassem todos os cantos da casa, numa
versão dura e implacável de si mesmo, que a preocupou ligeiramente.
Sabia que ele tinha os seus próprios fantasmas por resolver, sofria
com eles, e ela tinha-lhe trazido mais um para o ensombrar.
Esticou-se
no sofá, e procurou com o olhar por Filipe, que estranhamente ainda
não a tinha vindo cumprimentar.
-
Onde está o Filipe? – perguntou-lhe sem se mover.
-
Vou ver na varanda. Deixa-te estar. – respondeu-lhe, deixando-a a
descontrair. Devia estar de rastos depois daquilo tudo. Tinha muita
força mental para lidar com os problemas, dizia a si mesmo
surpreendido. Já tinha visto pessoas desabarem por muito menos, mas
ali estava ela, apenas abatida e cansada. Nada de histerismos, nem
descontroles, e suspeitava que o motivo era ele. Não que se achasse
importante ao ponto de a conseguir ajudar a manter o equilíbrio, mas
tinha a impressão de que ela o estava a tentar proteger, engolindo a
dor e forçando-se a lidar com os problemas de forma minimamente
controlada. Não sabia bem se isso era positivo ou não, se não
seria injusto para Isabel estar preocupada com ele num momento
daqueles.
Olhou
a varanda e ficou surpreendido por não encontrar o cão estendido ao
sol, como seria de esperar. Uma leve dor de barriga invadiu-o,
deixando-o desconfortável. Onde se teria metido o animal? Fingiu
naturalidade ao passar por ela em direção ao quarto, para não
levantar suspeitas desnecessárias e fez uma pequena prece para que
Filipe estivesse esparramado na sua cama a sujar-lhe a colcha toda de
pelos. Abriu a porta e não o encontrou também. Um nervoso miudinho
fê-lo abrir freneticamente todas as divisões da casa, sempre vazias
e silenciosas. Passou as mãos pelo cabelo e respirou fundo, onde
estaria o cão? Isabel surgiu atrás de si, olhando-o
interrogativamente e reagiu instantaneamente à energia vinda de
João, que já respirava aceleradamente.
-
Não está em lado nenhum, pois não?... – gemeu, sentindo-se a
gelar.
-
Não… - agarrou-a pelos braços, apoiando-a em si, enquanto pensava
no que fazer e no que poderia ter ali acontecido. – Tem calma, deve
haver uma explicação. Vou telefonar à Rosário. – sem a largar
encaminhou-se para a sala e sentaram-se no sofá, enquanto ligavam
para casa da empregada.
-
Estou? – atendeu Nélia descontraidamente.
-
Estou? – aquela voz parecia-lhe familiar, mas dedicou pouco tempo a
pensar nisso. – A Rosário está? É o João Marques, precisava de
falar com ela com urgência por favor.
-
Ah, sim, um momento… - sobressaltou-se com aquela coincidência e
fingiu um tom de voz mais grave, correndo a chamar a tia que atendeu
prontamente.
-
Sim, Dr? O que se passa? – perguntou nervosa. Sabia que aquela
visita à hora de almoço lhe parecera estranha. Só temia que
tivesse feito asneira ao confiar no homem.
-
Olá Rosário. Onde está o Filipe? – perguntou de chofre a
sentir-se cada vez mais desconfiado de que ali havia esturro.
-
O dono apareceu aí em casa e disse que tinha combinado consigo para
o levar… - respondeu com a voz fraca ao detetar no patrão
nervosismo.
-
Dono? – berrou – Mas qual dono? – uma dor aguda começou a
nascer-lhe na cabeça, estalando à medida que a respiração se
apressava.
-
Ai valha-me Deus… Não me diga que aquele homem me mentiu… -
choramingou Rosário que se sentou a desfalecer numa cadeira que
tinha por perto.
-
O que lhe disse ele exatamente? – forçou-se a ser prático, não
seria prudente gritar com a empregada, afinal parecia ter sido
enganada.
-
Que era o dono do animal, e que tinha combinado consigo ir buscá-lo
para o levar ao veterinário, sabe, por causa da pata partida… e eu
realmente achei estranho o cão rosnar, mas ele trazia açaime e tudo
para lhe pôr, e disse que o cão era perigoso… - tinha ficado
aliviada quando o homem o levara dali, pensou angustiada.
-
Como era ele? O que tinha vestido? – perguntou automaticamente.
-
Bem… muito elegante. Bem parecido. Moreno, de barba escura, óculos,
meio calvo… - explicou.
-
Até amanhã. – desligou o telemóvel sem mais conversa, mantendo
Isabel agarrada a si, de olhos rasos de água, sem reagir. Pela
descrição de Rosário tinha-o visto de manhã, e não tinha sido
por coincidência. Quase lhe batera no carro, assustando-o de
propósito, matutava furioso com a ousadia do traste. – Isabel, tem
calma. Tudo se vai resolver. – disse-lhe, tentando encontrar o seu
olhar, que parecia perdido. – Eu vou tentar encontrá-lo. Vamos,
ficas com a Elisabete e o César. – concluiu, levantando-a e
encaminhando-a para fora de casa.
-
Por favor, não. Eu quero ir. – suplicou, desesperada com a ideia
de ficar sozinha.
-
Eu vou apenas a tua casa certificar-me de que ele não o levou para
lá e vou direto à polícia. Prometo que tenho cuidado. –
explicou, continuando a caminhada sem abrandar o passo.
-
Não, não, por favor, não podes ir sozinho… - começou a implorar
já a sentir-se descontrolada com a ideia de que desaparecesse também
como o cão.
-
Não vou sozinho, vou telefonar ao Salvador e ao Janota, se te sentes
mais segura assim. Pode ser? – perguntou-lhe, abraçando-a no
elevador.
-
Sim, por favor, não vás sozinho.
-
Não vou sozinho, prometo. – beijou-lhe a cabeça e dirigiram-se
para o prédio do amigo, subindo até ao primeiro andar pelas
escadas, aceleradamente.
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(imagem, internet)
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