-
Como?! – exclamou o psiquiatra chocado com o que Salvador lhe
dizia. – Peço desculpa João, tenho de ir atender um caso
urgente.- Despediu-se à pressa e saiu do quarto da clínica,
correndo em direção às urgências, onde Isabel deveria dar entrada
a qualquer momento. Porque teria tentado matar-se, perguntava-se
confuso, aquilo não era típico do seu tipo de personalidade. Não
compreendia como se podia ter enganado relativamente a Isabel. Mais
um diagnóstico errado a um amigo e uma quase morte. O que se andaria
a passar com as pessoas? Ou seria ele a chegar à altura da reforma e
o universo a dar-lhe sinais claros de demência?
Entrou
na ala de urgências da clínica e pediu informações sobre a
chegada de Isabel. Tinha sido encaminhada para o bloco, os cortes
precisavam de suturas profundas e talvez levasse uma transfusão para
estabilizar o organismo que ficara enfraquecido com a perda de
sangue. Esperou ansioso pela saída da paciente da sala de operações
e ficou aliviado ao perceber que não fora utilizada anestesia geral.
Isabel vinha consciente e aparentemente normal, apesar das ligaduras
nos pulsos e dos tubos que a acompanhavam.
-
Olá Isabel. Pregaste-nos um grande susto… - disse-lhe
carinhosamente, fazendo um festa no seu cabelo. – Queres companhia
até ao quarto? Acho que vais aqui ficar hoje, por causa da
transfusão. – informou-a calmamente.
-
Como quiser. – respondeu sem forças. Os braços picavam-lhe
arrepanhados e quentes e uma dor de cabeça afundava-se com o mal
estar geral do corpo.
-
Então vamos. – olhou a funcionária que transportava Isabel e
deu-lhes passagem para o elevador que dava acesso aos internamentos,
seguindo-as de perto.
-
Ala psiquiátrica? Outra vez? – escarneceu Isabel ao ver o botão
que a senhora premia e que correspondia a essa especialidade.
-
Não te preocupes, é só um procedimento normal nestes casos. Amanhã
revemos o caso.
-
Façam o que entenderem. – pouco lhe importava de facto o que lhe
pudessem fazer. Apenas queria certificar-se que Tiago não
sobrevivera. Depois disso tinha toda uma nova página em branco para
recomeçar de novo. Só temia alguns dos medicamentos a que fora
sujeita da primeira vez, em Castelo Branco. Eram angustiantes,
provocavam uma dormência sufocante na mente e retiravam liberdade de
movimentos. Se pudesse ali ficar sossegada em silêncio seria muito
bom. Precisava de paz e de tempo para se habituar à sua nova
condição de solteira. Sem ex-marido nem namorado.
As
funcionárias do piso colocaram-na o mais confortável possível,
cheias de cuidados e simpatia, possivelmente por estarem a lidar com
uma paciente amiga do grande Diretor da especialidade para a qual
trabalhavam e Isabel agradeceu a gentileza com um sorriso caloroso e
sincero. César não pôde deixar de reparar nos modos agradáveis de
Isabel e compreendeu o fascínio de João por ela, era uma mulher
genuinamente simpática e empática. E para compreender o amigo era
necessária muita boa vontade. João tinha uma carapaça de
arrogância que nem todos conseguiam ultrapassar, e só se revelaria
a alguém que o impressionasse. Isabel era bonita, bem educada e
gentil. Daquelas mulheres que antigamente nasciam em casas de algum
nível aristocrático e que não haveria aos pontapés nos bares que
ele frequentava de noite. Elisabete previra essa química entre os
dois, quando os tentou juntar, e como sempre, estava certa.
A
última enfermeira saiu e César sentou-se perto de Isabel, queria
tirar a limpo o que se tinha passado e perceber aquela atitude
extrema de Isabel.
-
Podemos falar um pouco? – perguntou calmamente olhando-a com
amizade.
-
Sim. Ele morreu? – respondeu com a pergunta que a preocupava.
-
Sim. – disse sem emoção.
Isabel
fechou os olhos e respirou fundo. Não tinha sido em vão o seu quase
sacrifício.
-
Eu matei-o. – confessou, com sentimentos díspares a invadirem-na.
-
Não é isso que a polícia pensa, e talvez seja melhor assim.
Isabel, porque cortaste os pulsos?
-
César, aquele homem nunca ia deixar-me em paz. Já não tenho nada
que me prenda a tudo isto, ele matou tudo o que me era importante…
- uma lágrima caiu-lhe do rosto chegando à almofada.
-
O João não está morto. Para de pensar assim. Apenas está
momentaneamente confuso. Se o Salvador e o Janota não chegassem a
tempo tinhas morrido também. – explicou, tentando demonstrar
empatia com a sua atitude.
-
Primeiro foi o meu filho… ele bateu-me tanto que eu abortei…
depois a minha liberdade, depois o Filipe, o João enlouqueceu, não
acha que são motivos suficientes para eu dar cabo daquele homem? –
disse exaltada.
-
Tinhas todos os motivos e mais alguns para o quereres morto, mas se
sais por aí a dizer isso, vais presa. Por favor, acalma-te, e o João
não está louco. Já te expliquei. – disse com firmeza.
-
Acha que ele se vai lembrar de tudo?... De nós?... – perguntou
mais resignada.
-
Acho. Mas temos de lhe dar tempo. – respondeu – Porque é que
fizeste isto a ti própria? – insistiu.
-
Quando saí da clínica ia doida, sentia uma raiva dentro de mim que
não tem explicação… Não sei, pus nas mãos de Deus… Sabia que
ele me iria seguir até casa, esperei por ele, e quando se sentou à
minha frente o olhar dele ainda me deu mais convicção. Todos os
mortos ali espelhados naquela loucura… queria fazê-lo sofrer, ter
medo, vingar-me, talvez. – explicou, chorando em silêncio –
Depois ele lançou-se sobre mim e eu aproveitei o descontrolo dele e
virei a faca na sua direção. Na verdade, foi só porque ele caiu em
cima de mim que morreu. Eu só tive de segurar a faca… Não, não
estou arrependida, se me vai perguntar isso. Faria tudo de novo.
-
Não digas isto a ninguém, por favor. Já chega de castigos, não
achas? Matar ou ver morrer outra pessoa sem lhe prestar auxílio,
mesmo que a odiemos e tenhamos muitas razões para lhe querer mal, é
sempre errado, e sabes disso. É hipocrisia dizer-te isto, mas a
polícia e os tribunais é que deveriam ter esse papel, mas como
sabes, nem sempre funcionam. Lançaram sobre ti essa
responsabilidade, e só por isso, eu entendo. Condeno, mas entendo.
Se me perguntassem se faria algo semelhante, talvez o fizesse. O
desespero não é um bom conselheiro. – deu-lhe a mão em
solidariedade com as lágrimas de tristeza e choque – Compreendes?
-
Sim. Por favor, não avisem os meus pais. Não quero que se
preocupem.
-
Acho que já o fizeram. E Isabel, os amigos e família servem para
nos ajudar a superar os momentos difíceis, não tens de carregar
tudo sozinha.
-
Talvez vá então até casa, em Castelo Branco. Não sei se aguento
ver o João a olhar-me como se eu fosse transparente. – disse,
fungando mais um pouco.
-
Fazes bem, eu estarei aqui todos os dias a cuidar dele, e se houver
alguma melhora telefono-te. Cuida de ti agora, e já sabes, o Tiago
tentou matar-te e suicidou-se de seguida. É isto que vais dizer.
Combinado?
-
Sim… Posso pedir só mais uma coisa?
-
Claro.
-
Por favor não os deixe drogarem-me. Não quero calmantes, nem coisas
do género. Prefiro chorar tudo o que preciso e deixar a dor passar.
– pediu, agarrando-lhe com força na mão.
-
Tudo bem. Eu vou dar essa ordem. Mas se mudares de ideias, manda-me
chamar. – levantou-se, beijou-lhe a testa e despediu-se.
“
De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado.
Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas
vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca,
para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de
ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela
reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de
acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes
pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu
lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas
bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira
infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda
mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou
muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela
lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar
com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito,
suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à
terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os
anjos só podiam viver perto de Deus.”
-
Não o leve!! Não! – gritou João, que acordou desesperado coberto
de suor. Uma voz de mulher contava-lhe uma história em sonhos, sem
rosto nem nome. Uma angústia sufocante apertava-lhe o peito,
tirando-lhe oxigénio, como se se afogasse lentamente. Os enfermeiros
subiram a dose do calmante, aliviando-lhe a dor, e depois de alguns
minutos, retomou o seu sono induzido e involuntário. O último
pensamento que teve foi o anjo, que lhe sorria, sorrindo feliz, em
direção a Deus.
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(imagem, internet)
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