sexta-feira, 12 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 17 (4ª parte)




- Como?! – exclamou o psiquiatra chocado com o que Salvador lhe dizia. – Peço desculpa João, tenho de ir atender um caso urgente.- Despediu-se à pressa e saiu do quarto da clínica, correndo em direção às urgências, onde Isabel deveria dar entrada a qualquer momento. Porque teria tentado matar-se, perguntava-se confuso, aquilo não era típico do seu tipo de personalidade. Não compreendia como se podia ter enganado relativamente a Isabel. Mais um diagnóstico errado a um amigo e uma quase morte. O que se andaria a passar com as pessoas? Ou seria ele a chegar à altura da reforma e o universo a dar-lhe sinais claros de demência?
Entrou na ala de urgências da clínica e pediu informações sobre a chegada de Isabel. Tinha sido encaminhada para o bloco, os cortes precisavam de suturas profundas e talvez levasse uma transfusão para estabilizar o organismo que ficara enfraquecido com a perda de sangue. Esperou ansioso pela saída da paciente da sala de operações e ficou aliviado ao perceber que não fora utilizada anestesia geral. Isabel vinha consciente e aparentemente normal, apesar das ligaduras nos pulsos e dos tubos que a acompanhavam.
- Olá Isabel. Pregaste-nos um grande susto… - disse-lhe carinhosamente, fazendo um festa no seu cabelo. – Queres companhia até ao quarto? Acho que vais aqui ficar hoje, por causa da transfusão. – informou-a calmamente.
- Como quiser. – respondeu sem forças. Os braços picavam-lhe arrepanhados e quentes e uma dor de cabeça afundava-se com o mal estar geral do corpo.
- Então vamos. – olhou a funcionária que transportava Isabel e deu-lhes passagem para o elevador que dava acesso aos internamentos, seguindo-as de perto.
- Ala psiquiátrica? Outra vez? – escarneceu Isabel ao ver o botão que a senhora premia e que correspondia a essa especialidade.
- Não te preocupes, é só um procedimento normal nestes casos. Amanhã revemos o caso.
- Façam o que entenderem. – pouco lhe importava de facto o que lhe pudessem fazer. Apenas queria certificar-se que Tiago não sobrevivera. Depois disso tinha toda uma nova página em branco para recomeçar de novo. Só temia alguns dos medicamentos a que fora sujeita da primeira vez, em Castelo Branco. Eram angustiantes, provocavam uma dormência sufocante na mente e retiravam liberdade de movimentos. Se pudesse ali ficar sossegada em silêncio seria muito bom. Precisava de paz e de tempo para se habituar à sua nova condição de solteira. Sem ex-marido nem namorado.
As funcionárias do piso colocaram-na o mais confortável possível, cheias de cuidados e simpatia, possivelmente por estarem a lidar com uma paciente amiga do grande Diretor da especialidade para a qual trabalhavam e Isabel agradeceu a gentileza com um sorriso caloroso e sincero. César não pôde deixar de reparar nos modos agradáveis de Isabel e compreendeu o fascínio de João por ela, era uma mulher genuinamente simpática e empática. E para compreender o amigo era necessária muita boa vontade. João tinha uma carapaça de arrogância que nem todos conseguiam ultrapassar, e só se revelaria a alguém que o impressionasse. Isabel era bonita, bem educada e gentil. Daquelas mulheres que antigamente nasciam em casas de algum nível aristocrático e que não haveria aos pontapés nos bares que ele frequentava de noite. Elisabete previra essa química entre os dois, quando os tentou juntar, e como sempre, estava certa.
A última enfermeira saiu e César sentou-se perto de Isabel, queria tirar a limpo o que se tinha passado e perceber aquela atitude extrema de Isabel.
- Podemos falar um pouco? – perguntou calmamente olhando-a com amizade.
- Sim. Ele morreu? – respondeu com a pergunta que a preocupava.
- Sim. – disse sem emoção.
Isabel fechou os olhos e respirou fundo. Não tinha sido em vão o seu quase sacrifício.
- Eu matei-o. – confessou, com sentimentos díspares a invadirem-na.
- Não é isso que a polícia pensa, e talvez seja melhor assim. Isabel, porque cortaste os pulsos?
- César, aquele homem nunca ia deixar-me em paz. Já não tenho nada que me prenda a tudo isto, ele matou tudo o que me era importante… - uma lágrima caiu-lhe do rosto chegando à almofada.
- O João não está morto. Para de pensar assim. Apenas está momentaneamente confuso. Se o Salvador e o Janota não chegassem a tempo tinhas morrido também. – explicou, tentando demonstrar empatia com a sua atitude.
- Primeiro foi o meu filho… ele bateu-me tanto que eu abortei… depois a minha liberdade, depois o Filipe, o João enlouqueceu, não acha que são motivos suficientes para eu dar cabo daquele homem? – disse exaltada.
- Tinhas todos os motivos e mais alguns para o quereres morto, mas se sais por aí a dizer isso, vais presa. Por favor, acalma-te, e o João não está louco. Já te expliquei. – disse com firmeza.
- Acha que ele se vai lembrar de tudo?... De nós?... – perguntou mais resignada.
- Acho. Mas temos de lhe dar tempo. – respondeu – Porque é que fizeste isto a ti própria? – insistiu.
- Quando saí da clínica ia doida, sentia uma raiva dentro de mim que não tem explicação… Não sei, pus nas mãos de Deus… Sabia que ele me iria seguir até casa, esperei por ele, e quando se sentou à minha frente o olhar dele ainda me deu mais convicção. Todos os mortos ali espelhados naquela loucura… queria fazê-lo sofrer, ter medo, vingar-me, talvez. – explicou, chorando em silêncio – Depois ele lançou-se sobre mim e eu aproveitei o descontrolo dele e virei a faca na sua direção. Na verdade, foi só porque ele caiu em cima de mim que morreu. Eu só tive de segurar a faca… Não, não estou arrependida, se me vai perguntar isso. Faria tudo de novo.
- Não digas isto a ninguém, por favor. Já chega de castigos, não achas? Matar ou ver morrer outra pessoa sem lhe prestar auxílio, mesmo que a odiemos e tenhamos muitas razões para lhe querer mal, é sempre errado, e sabes disso. É hipocrisia dizer-te isto, mas a polícia e os tribunais é que deveriam ter esse papel, mas como sabes, nem sempre funcionam. Lançaram sobre ti essa responsabilidade, e só por isso, eu entendo. Condeno, mas entendo. Se me perguntassem se faria algo semelhante, talvez o fizesse. O desespero não é um bom conselheiro. – deu-lhe a mão em solidariedade com as lágrimas de tristeza e choque – Compreendes?
- Sim. Por favor, não avisem os meus pais. Não quero que se preocupem.
- Acho que já o fizeram. E Isabel, os amigos e família servem para nos ajudar a superar os momentos difíceis, não tens de carregar tudo sozinha.
- Talvez vá então até casa, em Castelo Branco. Não sei se aguento ver o João a olhar-me como se eu fosse transparente. – disse, fungando mais um pouco.
- Fazes bem, eu estarei aqui todos os dias a cuidar dele, e se houver alguma melhora telefono-te. Cuida de ti agora, e já sabes, o Tiago tentou matar-te e suicidou-se de seguida. É isto que vais dizer. Combinado?
- Sim… Posso pedir só mais uma coisa?
- Claro.
- Por favor não os deixe drogarem-me. Não quero calmantes, nem coisas do género. Prefiro chorar tudo o que preciso e deixar a dor passar. – pediu, agarrando-lhe com força na mão.
- Tudo bem. Eu vou dar essa ordem. Mas se mudares de ideias, manda-me chamar. – levantou-se, beijou-lhe a testa e despediu-se.



“ De todos os meninos, aquele era o mais bonito e mais bem comportado. Diziam que parecia um anjo, de cabelo claro, olhos azuis, bochechas vermelhas… Mas um dia, veio uma fada e quis fazer-lhe uma marca, para o nomear anjo de Deus. O menino gritou, esperneou, tinha medo de ficar feio e que já não gostassem dele! Os pais, tristes com aquela reação, deixaram de lhe fazer as vontades, e o menino deixou de acreditar de que era o preferido. O seu cabelo escureceu, os dentes pequeninos e imaculados começaram a cair, aparecendo outros no seu lugar, maiores e estranhos, borbulhas vermelhas encheram as suas bochechas, e o menino começou a perder a alegria da primeira infância. O seu irmão mais novo, transformou-se num menino ainda mais bonito do que ele fora um dia, e ao contrário de si, ficou muito feliz quando a fada lhe fez a mesma proposta. Deixou que ela lhe fizesse a marca dos anjos, mas como pagamento, teria de voltar com ela para o céu. Os pais e o primeiro menino choraram muito, suplicando para que ela lhe retirasse a marca e o devolvesse à terra, mas ela não quis saber. Aquele menino queria ser anjo, e os anjos só podiam viver perto de Deus.”


- Não o leve!! Não! – gritou João, que acordou desesperado coberto de suor. Uma voz de mulher contava-lhe uma história em sonhos, sem rosto nem nome. Uma angústia sufocante apertava-lhe o peito, tirando-lhe oxigénio, como se se afogasse lentamente. Os enfermeiros subiram a dose do calmante, aliviando-lhe a dor, e depois de alguns minutos, retomou o seu sono induzido e involuntário. O último pensamento que teve foi o anjo, que lhe sorria, sorrindo feliz, em direção a Deus.

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(imagem, internet)

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