Esperou
que Isabel desaparecesse na rua e saiu detrás da carrinha
estacionada, correndo até à porta do prédio e apressando-se a
retirar da caixa do correio a chave da tia. Se tudo corresse como
planeara desde a clínica até ali, nunca mais a Rosário entraria
naquela casa e essa era uma das primeiras coisas a providenciar,
afastar a empregada de João e do seu apartamento. Entrou em casa e
sorriu de orelha a orelha, com uma satisfação que lhe fazia inchar
o peito. Há muito tempo que não se sentia tão feliz, realizada e
optimista. Na sua cabeça nada poderia correr mal, era tão fácil
que dava vontade de gargalhar. A vingança mais fria que poderia ter
imaginado, assumir o lugar de Isabel, deitar-se na sua cama, conduzir
o seu carro, usufruir de todas as mordomias chiques que João nunca
lhe dera a oportunidade sequer de desejar, expulsando-a de casa como
se fosse um pedaço de esterco sem utilidade. Iria ocupar o seu lugar
na vida dele, usá-lo enquanto a sorte lhe permitisse, organizar-se
financeiramente, introduzindo-se naquele meio social requintado, e se
João recuperasse a memória, depressa encontraria outro possível
namorado rico a quem se encostar. A vida tinha-lhe sido até então
madrasta, estava na altura de mudar as regras e fazer-se esperta.
Esperar pela bondade do destino ficava fora de questão, nem que para
isso tivesse que se transformar em Isabel.
-
Podes por favor explicar-me isso tudo com calma? – Elisabete
esforçava-se por entender o discurso atrapalhado e nervoso do
marido, que lhe ligara antes de chegar a casa, o que era raro e sinal
de problemas.
-
Lisa, o João está a ser vítima de burla, entendes? Estava lá uma
mulher no quarto que assumiu ser a “Isabel”, a namorada, me
enfrentou descaradamente, sem papas na língua… - gemeu, a
sentir-se patético à medida que verbalizava tudo aquilo.
-
Tem calma, demoras muito a chegar? Não é melhor falarmos em casa,
tomas um banho, jantamos e explicas-me tudo com tempo? Vamos, não há
nada que não se possa resolver, anda. Conduz com calma que eu vou
terminar o jantar. – disse carinhosamente, transformando a neurose
do marido automaticamente.
-
Sim, sim… tens razão, já vou a caminho. – confessou, respirando
fundo – Até já. – desligou o telefone e concentrou-se no
trajeto, olhando-o com mais atenção que o costume. Fazia aquela
estrada, ida e volta, há vários anos, mas só quando ficava
realmente preocupado é que lhe prestava atenção, procurando nos
seus pormenores uma âncora para o desespero. Agarrava-se à
enormidade das árvores à sua volta, estudando a sua forma, para não
pensar em nada do que assistira naquele fim de tarde. A Lisa saberia
desdramatizar tudo aquilo, encontrar uma solução prática e
tirar-lhe aquele peso da culpa, pensou, aliviado com a perspectiva de
chegar a casa. Não poderia nunca ser Psiquiatra se não estivesse
casado com ela, admitiu, recordando-se de lhe ter pedido um dia que
fosse sua e nunca o deixasse, por puro egoísmo, a que muitos
chamavam de amor. Sem ela não seria nada, amava-a, ou melhor,
precisava-a mais que tudo.
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(imagem, internet)
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