João
saía do quarto de banho, amparando-se nos móveis, ainda pouco certo
nos movimentos, quando Nélia apareceu bruscamente e se lançou nos
seus braços, emocionada.
-
Que saudades… tive tantas saudades tuas… - levantou a cabeça e
procurou o seu olhar, beijando-o com paixão, no exato momento em que
César entrava de novo no quarto.
-
Desculpe Dr… - disse João envergonhado com aquela indiscrição da
namorada. – Já conversaram tudo?
-
Não, mas fica para uma outra altura. – rematou o médico, olhando
Nélia duramente.
-
Querido, agora deita-te, ainda estás fraco. – encaminhou-o para a
cama com suavidade – Dr, onde estão as coisas pessoais do meu
namorado? – perguntou com os olhos sorridentes, deixando-o
encurralado.
-
Guardadas.
-
Então pode pedir que as tragam? Precisava de usar o carro, o meu
está na oficina, ainda não o fui buscar.
-
Preciso da autorização do paciente, e nas condições atuais não
podemos colocar-lhe essa responsabilidade… - explicava, a tentar
safar-se da situação e negar o pedido da mulher, que infelizmente
parecia astuta o suficiente para conseguir o que queria.
-
Desculpe Dr, mas parece-me um pouco de zelo profissional a mais.
Afinal, isso são pormenores de protocolo! Eu preciso de usar o carro
e estão lá as chaves! Não achas João?
-
Sim, claro. Se ela precisa do carro, dr… - concluiu assarapantado.
-
Pronto, está a ver? Peça lá a uma funcionária que traga tudo o
que é do João, inclusive a roupa que trazia quando deu entrada. Eu
levo para casa.
-
Sim, claro. – resignou-se furioso, levantando-se e fingindo-se
convencido. Sentia-se a perder o controle de tudo aquilo, a aquela
maluca agia demasiado rápido, sem lhe dar hipótese de pensar como
poderia reverter a situação sem prejudicar João. Caminhou nervoso
pelo corredor, e pensou em telefonar para Isabel, perguntar-lhe se
saberia quem era aquela mulher misteriosa, mas iria simplesmente
magoá-la com aquela história surreal. Calma, dizia a si mesmo, era
preciso ter calma para não piorar tudo. Pegou nos pertences de João
e colocou-os num saco da clínica, suspirando. Quase quarenta anos de
profissão e nunca tinha lidado com uma excêntrica daquele calibre.
Lisa saberia como lidar com ela, lamentou-se, porque não conseguia
ele calar a matraca à loira sabichona?
Isabel
fechou a porta de casa de João e limpou uma pequena lágrima que
teimava em querer sair desde que se encaminhara para a saída. O medo
de nunca mais ali voltar invadia-a, tornando-a ansiosa e frágil.
Sabia que estava a dramatizar, era uma questão de tempo até João
recuperar a memória, mentalizava-se, colocando a chave na caixa do
correio, como Rosário pedira. Todas as suas roupas, saco de viagem,
vestígios diretos e indiretos da sua breve presença na casa foram
meticulosamente retirados, e Isabel sabia que era para o bem de João.
César estava certo, não poderiam criar uma realidade alternativa na
sua mente, contando-lhe pormenores importantes do passado esquecido,
simplesmente porque iriam colidir positiva e negativamente com o que
o seu subconsciente bloqueava. Quando ele se lembrasse, deveria estar
o menos influenciado possível, para conseguir lidar de forma
saudável com os sentimentos que todas as memórias lhe trariam.
Isabel sabia-o, percebia e respeitava a sua opinião profissional, e
deixou apenas Ganesha, discretamente arrumado numa prateleira
superior, praticamente invisível, para o guardar durante a noite,
assim que regressasse a casa. Saiu do prédio e dirigiu-se ao jipe,
acelerando nervosamente. Já estava atrasada para a sua aula da tarde
e ficar por ali era torturante. Felizmente tinha o yoga para a
ajudar, suspirou agradecida.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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