terça-feira, 23 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 19 (3ª parte)




João saía do quarto de banho, amparando-se nos móveis, ainda pouco certo nos movimentos, quando Nélia apareceu bruscamente e se lançou nos seus braços, emocionada.
- Que saudades… tive tantas saudades tuas… - levantou a cabeça e procurou o seu olhar, beijando-o com paixão, no exato momento em que César entrava de novo no quarto.
- Desculpe Dr… - disse João envergonhado com aquela indiscrição da namorada. – Já conversaram tudo?
- Não, mas fica para uma outra altura. – rematou o médico, olhando Nélia duramente.
- Querido, agora deita-te, ainda estás fraco. – encaminhou-o para a cama com suavidade – Dr, onde estão as coisas pessoais do meu namorado? – perguntou com os olhos sorridentes, deixando-o encurralado.
- Guardadas.
- Então pode pedir que as tragam? Precisava de usar o carro, o meu está na oficina, ainda não o fui buscar.
- Preciso da autorização do paciente, e nas condições atuais não podemos colocar-lhe essa responsabilidade… - explicava, a tentar safar-se da situação e negar o pedido da mulher, que infelizmente parecia astuta o suficiente para conseguir o que queria.
- Desculpe Dr, mas parece-me um pouco de zelo profissional a mais. Afinal, isso são pormenores de protocolo! Eu preciso de usar o carro e estão lá as chaves! Não achas João?
- Sim, claro. Se ela precisa do carro, dr… - concluiu assarapantado.
- Pronto, está a ver? Peça lá a uma funcionária que traga tudo o que é do João, inclusive a roupa que trazia quando deu entrada. Eu levo para casa.
- Sim, claro. – resignou-se furioso, levantando-se e fingindo-se convencido. Sentia-se a perder o controle de tudo aquilo, a aquela maluca agia demasiado rápido, sem lhe dar hipótese de pensar como poderia reverter a situação sem prejudicar João. Caminhou nervoso pelo corredor, e pensou em telefonar para Isabel, perguntar-lhe se saberia quem era aquela mulher misteriosa, mas iria simplesmente magoá-la com aquela história surreal. Calma, dizia a si mesmo, era preciso ter calma para não piorar tudo. Pegou nos pertences de João e colocou-os num saco da clínica, suspirando. Quase quarenta anos de profissão e nunca tinha lidado com uma excêntrica daquele calibre. Lisa saberia como lidar com ela, lamentou-se, porque não conseguia ele calar a matraca à loira sabichona?


Isabel fechou a porta de casa de João e limpou uma pequena lágrima que teimava em querer sair desde que se encaminhara para a saída. O medo de nunca mais ali voltar invadia-a, tornando-a ansiosa e frágil. Sabia que estava a dramatizar, era uma questão de tempo até João recuperar a memória, mentalizava-se, colocando a chave na caixa do correio, como Rosário pedira. Todas as suas roupas, saco de viagem, vestígios diretos e indiretos da sua breve presença na casa foram meticulosamente retirados, e Isabel sabia que era para o bem de João. César estava certo, não poderiam criar uma realidade alternativa na sua mente, contando-lhe pormenores importantes do passado esquecido, simplesmente porque iriam colidir positiva e negativamente com o que o seu subconsciente bloqueava. Quando ele se lembrasse, deveria estar o menos influenciado possível, para conseguir lidar de forma saudável com os sentimentos que todas as memórias lhe trariam. Isabel sabia-o, percebia e respeitava a sua opinião profissional, e deixou apenas Ganesha, discretamente arrumado numa prateleira superior, praticamente invisível, para o guardar durante a noite, assim que regressasse a casa. Saiu do prédio e dirigiu-se ao jipe, acelerando nervosamente. Já estava atrasada para a sua aula da tarde e ficar por ali era torturante. Felizmente tinha o yoga para a ajudar, suspirou agradecida.

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(imagem, internet)

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