sexta-feira, 26 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (1ª parte)





Há muito tempo que não acordava tão esperançosa com o futuro. A ideia de visitar João na clínica, lhe cortar o cabelo como prometido, conversar com ele, era tão doce, que lhe iluminou o início da manhã, como já não acontecia há meses. O dia de chuva que se adivinhava, frio e desconfortável não a incomodavam minimamente. João esperava-a, iriam estar juntos, e felizmente a amnésia não o tinha transformado em ninguém diferente. Continuava o mesmo, pensava satisfeita, apenas não se recordava de nada, nem das coisas boas, nem das más, e isso poderia nem ser assim tão negativo. Tinha fantasmas terríveis que o assombravam desde adolescente, libertara-se de tudo, agora Isabel teria de o conquistar, uma vez mais. Isso parecia-lhe um pequeno preço a pagar pela paz de espírito que a perda de memória provocara. Se havia coisa que tinha aprendido com a Dazinha era aquela forma positiva de transformar uma situação dramática numa possibilidade de novas perspectivas. "Só não há solução para a morte, menina Isabelinha!", diria ela, resolvendo o problema instantaneamente.
Fechou o jipe e encaminhava-se para o edifício da clínica, quando viu Nélia estacionar o carro de João e estacou confusa. Estaria a ver bem?, seria um carro igual?. César apareceu no seu raio de visão, no que lhe pareceu serem minutos, depois da assombração com a loira espampanante. Isabel saiu do transe e correu até o alcançar, a sentir uma nuvem agoirenta a cobri-los, na eminência de uma carga de água. - Dr César!- gritou, temendo dar de caras com a mulher no átrio da clínica.
- Isabel... - sussurrou desanimado. Tivera pesadelos com aquela situação, até a mulher o obrigar a tomar um chá calmante a meio da noite. Teria de explicar à verdadeira Isabel que não fora capaz de lidar com a outra, e agora João vivia uma mentira.
- Dr César... - arfou com o esforço da corrida – Conhece aquela mulher? Aquele é o carro do João, não é?, ou estou doidinha?!... É que me parece mesmo o carro... - lançou sem parar, já com as pernas a tremer.
- Isabel... temos de conversar... - confessou, agarrando-lhe paternalmente no antebraço e conduzindo-a para o elevador, enumerando mentalmente o seu discurso e pedido de desculpas.


- Querido... bom dia! - ronronou Nélia ao entrar sem bater, interrompendo uma conversa entre João e uma enfermeira que o medicava antes do pequeno almoço.
- Olá Isabel... - esforçou-se por sorrir – Aqui tão cedo? - Uma estranha sensação invadiu-lhe o peito, deixando-o levemente aborrecido com a visita da namorada. Tinha pensado em dormitar um pouco antes do corte de cabelo prometido pela enfermeira albicastrense. Não sabia se Isabel ali estava só de passagem ou se ficaria algum tempo, o que o deixou amuado. Sentia-se sem paciência para conversas.
- Vim ver como te sentes, se precisas de alguma coisa... tenho ginásio agora de manhã, mas não queria deixar de te ver primeiro... - ronronou, encostando-se a ele sem cerimónias e pudor, sem se importar com a presença da enfermeira que arrumava os seus utensílios bastante corada.
- Isabel... - olhou a enfermeira envergonhado, tudo aquilo lhe parecia não ser bem o tipo de comportamento que gostava.
- João, a senhora enfermeira está habituada a ver esposas apaixonadas com saudades, não está? - olhou-a com firmeza e um certo atrevimento, sem se afastar do médico constrangido.
A enfermeira saiu sem responder, deitando um olhar duro à visita tão mal educada, e deixou-os a sós, apressando-se por ir alertar o Dr César dos novos desenvolvimentos.
- Pronto, já estamos sozinhos. - sorriu-lhe satisfeita – Queria mesmo falar-te em privado. - disse, modificando o tom de voz, denunciando um tema mais sério – Sabes aquele cartão que eu tinha da tua conta bancária? Olha, perdi-o... e agora preciso de levantar dinheiro para pagar o ginásio e não consigo... Eu avisei-te que devias ter-me posto como 2ª titular da conta, afinal, foi lá que depositaste o dinheiro que fizeste com a venda do meu apartamento. - recriminou-o, fingindo-se ofendida com a ação – Eu logo vi que isto podia dar problemas... tudo bem que íamos comprar uma casa os dois, e metade sou eu que vou pagar, mas eu podia ter-te dado o dinheiro só na altura... agora estou de mãos e pés atados. Explicas-me como vou sobreviver até tu voltares para casa?
- Isabel... - reagiu estupefacto com toda aquela informação estranha e confusa – Eu não sei o que dizer... bem, o melhor é fazer-se outro cartão e tiras o diheiro... não sei... - conseguiu dizer, perante aquela mulher tão aborrecida.
- Acho bem, e vou tratar disso ainda hoje! Vou ao banco e de lá peço ao gerente para te ligar, assim explicas-lhe que estás internado e eu trato de tudo, trago-te depois os papeis para assinares e resolvemos isto num instante! - beijou-lhe a boca, lentamente, deixando-o dormente e confuso, e saiu vitoriosa, sorrindo de costas para o médico desmemoriado. Aquilo era tão fácil que até dava vontade de rir! Conseguira em alguns dias o que andara anos a imaginar, ser mulher de um médico cheio de dinheiro, a fazer vida de dondoca, com a vantagem que nem tinha de o aturar enquanto estivesse no hospital. Afinal a vida nem era assim tão madrasta, sofrera muito até ali chegar, e tinha todo o direito de usufruir daquele momento, o seu momento.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário