Há muito tempo que não acordava tão
esperançosa com o futuro. A ideia de visitar João na clínica, lhe
cortar o cabelo como prometido, conversar com ele, era tão doce,
que lhe iluminou o início da manhã, como já não acontecia há
meses. O dia de chuva que se adivinhava, frio e desconfortável não
a incomodavam minimamente. João esperava-a, iriam estar juntos, e
felizmente a amnésia não o tinha transformado em ninguém
diferente. Continuava o mesmo, pensava satisfeita, apenas não se
recordava de nada, nem das coisas boas, nem das más, e isso poderia
nem ser assim tão negativo. Tinha fantasmas terríveis que o
assombravam desde adolescente, libertara-se de tudo, agora Isabel
teria de o conquistar, uma vez mais. Isso parecia-lhe um pequeno
preço a pagar pela paz de espírito que a perda de memória
provocara. Se havia coisa que tinha aprendido com a Dazinha era
aquela forma positiva de transformar uma situação dramática numa
possibilidade de novas perspectivas. "Só não há solução
para a morte, menina Isabelinha!", diria ela, resolvendo o
problema instantaneamente.
Fechou o jipe e encaminhava-se para o
edifício da clínica, quando viu Nélia estacionar o carro de João
e estacou confusa. Estaria a ver bem?, seria um carro igual?. César
apareceu no seu raio de visão, no que lhe pareceu serem minutos,
depois da assombração com a loira espampanante. Isabel saiu do
transe e correu até o alcançar, a sentir uma nuvem agoirenta a
cobri-los, na eminência de uma carga de água. - Dr César!- gritou,
temendo dar de caras com a mulher no átrio da clínica.
- Isabel... - sussurrou desanimado.
Tivera pesadelos com
aquela situação, até a mulher o obrigar a tomar um chá calmante a
meio da noite. Teria de explicar à verdadeira Isabel que não fora
capaz de lidar com a outra, e agora João vivia uma mentira.
- Dr César... - arfou com o esforço
da corrida – Conhece aquela mulher? Aquele é o carro do João, não
é?, ou estou doidinha?!... É que me parece mesmo o carro... -
lançou sem parar, já com as pernas a tremer.
- Isabel... temos de conversar... -
confessou, agarrando-lhe paternalmente no antebraço e conduzindo-a
para o elevador, enumerando mentalmente o seu discurso e pedido de
desculpas.
- Querido... bom dia! - ronronou Nélia
ao entrar sem bater, interrompendo uma conversa entre João e uma
enfermeira que o medicava antes do pequeno almoço.
- Olá Isabel... - esforçou-se por
sorrir – Aqui tão cedo? - Uma estranha sensação invadiu-lhe o
peito, deixando-o levemente aborrecido com a visita da namorada.
Tinha pensado em dormitar um pouco antes do corte de cabelo prometido
pela enfermeira albicastrense. Não sabia se Isabel ali estava só de
passagem ou se ficaria algum tempo, o que o deixou amuado. Sentia-se
sem paciência para conversas.
- Vim ver como te sentes, se precisas
de alguma coisa... tenho ginásio agora de manhã, mas não queria
deixar de te ver primeiro... - ronronou, encostando-se a ele sem
cerimónias e pudor, sem se importar com a presença da enfermeira
que arrumava os seus utensílios bastante corada.
- Isabel... - olhou a enfermeira
envergonhado, tudo aquilo lhe parecia não ser bem o tipo de
comportamento que gostava.
- João, a senhora enfermeira está
habituada a ver esposas apaixonadas com saudades, não está? -
olhou-a com firmeza e um certo atrevimento, sem se afastar do médico
constrangido.
A enfermeira saiu sem responder,
deitando um olhar duro à visita tão mal educada, e deixou-os a sós,
apressando-se por ir alertar o Dr César dos novos desenvolvimentos.
- Pronto, já estamos sozinhos. -
sorriu-lhe satisfeita – Queria mesmo falar-te em privado. - disse,
modificando o tom de voz, denunciando um tema mais sério – Sabes
aquele cartão que eu tinha da tua conta bancária? Olha, perdi-o...
e agora preciso de levantar dinheiro para pagar o ginásio e não
consigo... Eu avisei-te que devias ter-me posto como 2ª titular da
conta, afinal, foi lá que depositaste o dinheiro que fizeste com a
venda do meu apartamento. - recriminou-o, fingindo-se ofendida com a
ação – Eu logo vi que isto podia dar problemas... tudo bem que
íamos comprar uma casa os dois, e metade sou eu que vou pagar, mas
eu podia ter-te dado o dinheiro só na altura... agora estou de mãos
e pés atados. Explicas-me como vou sobreviver até tu voltares para
casa?
- Isabel... - reagiu estupefacto com
toda aquela informação estranha e confusa – Eu não sei o que
dizer... bem, o melhor é fazer-se outro cartão e tiras o diheiro...
não sei... - conseguiu dizer, perante aquela mulher tão aborrecida.
- Acho bem, e vou tratar disso ainda
hoje! Vou ao banco e de lá peço ao gerente para te ligar, assim
explicas-lhe que estás internado e eu trato de tudo, trago-te depois
os papeis para assinares e resolvemos isto num instante! - beijou-lhe
a boca, lentamente, deixando-o dormente e confuso, e saiu vitoriosa,
sorrindo de costas para o médico desmemoriado. Aquilo era tão fácil
que até dava vontade de rir! Conseguira em alguns dias o que andara
anos a imaginar, ser mulher de um médico cheio de dinheiro, a fazer
vida de dondoca, com a vantagem que nem tinha de o aturar enquanto
estivesse no hospital. Afinal a vida nem era assim tão madrasta,
sofrera muito até ali chegar, e tinha todo o direito de usufruir
daquele momento, o seu momento.
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(imagem, internet)
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