- Já lhe disse que acho
que gosto de cães? - lançou, decidido a conversar o máximo que
pudesse.
- Sim, já disse. Mas se
quer a minha opinião, não saia daqui a correr e a ir adoptar um
cachorro! Esses animais pequenos dão muito trabalho, precisam de
muita paciência, tempo, disponibilidade, e vão sujar-lhe a casa
toda. Se ainda tivesse um quintal, podia lá deixar o cão, mas...
- Como sabe se eu tenho
ou não um quintal?... Eu não sei. - exclamou espantado com a
observação.
- Claro que não sei,
apenas deduzi pelo aspecto das suas mãos cuidadas... - apressou-se a
esclarecer, fingindo-se naturalmente concentrada no corte e desviando
a cabeça de forma a que ele não tivesse acesso direto à sua
imagem.
João observou as suas
mãos, curioso com a perspicácia dela, que já olhara tempo
suficiente para si para fazer deduções. - Hum... de facto não devo
fazer muita jardinagem..., mas não deixa de ser surpreendente como
as enfermeiras hoje em dia são dotadas. É massagens, cortes de
cabelo, investigação... - gozou, procurando o seu olhar e virando
ligeiramente a cabeça, quando uma dor fina e insuportável o atacou
na orelha esquerda e o fez gritar, afastando-se automaticamente das
mãos da enfermeira.
- Desculpe, por favor,
desculpe... - gaguejou Isabel, horrorizada com a tesourada que dera
na orelha de João, que sangrava sem parar. Pressionou a ferida com a
toalha, em pânico. - mas porque é que se mexeu? - berrou nervosa,
com as mãos a tremer.
- Agora a culpa é
minha? - gemeu, olhando-a espantado.
- Espere, vou chamar
ajuda. - disse sem pensar.
- Vá mas é buscar uma
agulha e linha e ponha-me isto novamente no sítio! - ralhou, com a
dor a abrandar rapidamente.
- Deixe-me ver... -
retirou suavemente a toalha e percebeu que o corte não era tão
grave como o grito dele fizera parecer. - João, acho que não é
preciso linha..., vou buscar um penso, já volto. - saiu apressada,
sem sequer lavar o sangue das mãos, a sentir o coração na boca.
Recordou rapidamente o que deveria fazer para parecer minimamente
profissional quando lhe limpasse a ferida e colocasse o penso e
procurou pelo material necessário num dos carrinhos que estava no
corredor. Voltou a correr para o quarto, fechou a porta e respirou
fundo. Aquilo não podia estar a acontecer... "apanha-se mais
depressa um mentiroso que um cocho!", diria a Dazinha, e ela
tinha sempre razão.
- Estou à espera! -
resmungou, enquanto tentava ao espelho observar a ferida que parecia
já não sangrar.
- Já aqui tenho tudo. -
disse, erguendo uma quantidade enorme de gazes e adesivos, e
obrigando-o a sentar-se novamente.
- Tem a certeza de que é
preciso isso tudo?
- Quem é que é aqui a
enfermeira? - exclamou, disfarçando o embaraço.
- Como quiser... -
disse, levantando as mãos em desistência. - Também não vou ao
"Pírulas" hoje... não há problema de ficar ridículo....-
acrescentou.
Isabel olhou-o
espantada, tinha tido um flash de memória sem se aperceber. Uma
bolha de oxigénio formou-se no seu peito, invadindo-a de esperança,
o que a fez sorrir.
- O que é o "Pírulas"?
- perguntou confuso com aquela sua afirmação.
- Acho que é um bar na
Praça... - respondeu, ficando estupidamente à espera que toda a
memória aparecesse de repente e ele a beijasse com saudade.
- Bem, não me recordo
de nada disso... - murmurou abatido com o acontecimento que o deixava
mais angustiado que esperançoso. Temia ficar tolo, sem recuperar a
memória de forma eficaz, apenas tendo uns vislumbres do que tinha
sido. Isso seria pior que nascer de novo, como tinha sugerido Marta
no dia anterior. - Pode deixar-me sozinho?
- Mas... e o resto do
cabelo? - uma azia desceu-lhe pela garganta, junto com uma vontade
enorme de chorar. Terminaria ali a sua relação com ele? Depois de
lhe dar uma tesourada numa orelha e o deixar como um mendigo de
cabelo desordenado..?
- Desculpe, tem razão,
termine o corte, por favor, acho que preciso de descansar... -
murmurou, sem a conseguir olhar. Sentia-se a descer a pique para uma
angústia sufocante, com o desespero a tomar-lhe conta dos
pensamentos.
- Eu prometo que sou
rápida... - gemeu, a sentir os nervos a descontrolarem-lhe os
movimentos das mãos, que cortavam a um ritmo cada vez mais rápido.
- Por favor, desculpe-me, não fique chateado, foi só de raspão, eu
faço-lhe um penso perfeitinho e daqui a uns dias já nem se nota...
- Não faz mal, eu
também não devia ter mexido a cabeça... - murmurou abatido, sem
vontade de continuar a conversar. - Eu mesmo faço o penso, deixe
estar.
- Eu já tive um cão,
já lhe tinha dito, era um companheiro... - fungou, tentando não se
deixar levar pela tristeza de tudo aquilo, pelo desespero que via no
olhar dele.
- Hum, hum... - disse,
sem emoção, olhando o infinito, sem lhe prestar grande atenção.
Até o simples facto de se sentir excitado perto daquela enfermeira o
fazia sentir-se mal. Seria assim tão canalha, que preferia a
companhia de uma estranha à da sua namorada? Porque nada fazia
sentido, nada do que sentia o acalmava ou elucidava do seu passado.
Deu uma última olhadela nela, e viu-se obrigado a desviar o olhar,
porque a vontade que tinha era a de a abraçar.
- Pronto, está feito.
- sacudiu os cabelos do pescoço e dos ombros e arrumou tudo,
para disfarçar a tristeza. - Pode deitar-se agora, se quiser, deve
precisar de descansar. Depois quando estiver mais bem disposto tome
um banho, para tirar os restantes cabelos que aí ficaram.
João obedeceu,
arrastou-se para o quarto e deixou-se cair na cama, virando-se para a
parede, para esconder o choro que o começava a ameaçar.
Isabel ficou estática a
olhá-lo, sem saber o que fazer. Queria tanto abraçá-lo e dizer-lhe
que o amava, mas não conseguia desobedecer a César. Aproximou-se o
mais que conseguiu da cama e respirou fundo.
- João? Posso ajudar?
Quer que chame o médico? - sussurrou emocionada.
João manteve-se em
silêncio, sem coragem para lhe pedir que ficasse e lhe desse a mão.
Tinha medo, muito medo do que pudesse vir a recordar ou não, mas ela
não o podia ajudar, não o conhecia, não sabia nada sobre a sua
antiga vida, era uma enfermeira simpática, ponto.
- Vou embora, então...
- reprimiu um soluço de choro, apertando os lábios. - As melhoras,
e trate de se pôr bom e arranjar o tal cão... - deu meia volta e
saiu, fechando a porta e correndo dali para fora. Não era assim que
tinha imaginado a despedida, com João de costas voltadas para ela,
em sofrimento, sem precisar dela. Procurou por César no gabinete do
médico, mas nem esse parecia importado, tendo-se esfumaçado no ar.
Chegou à rua sem se aperceber do caminho que tinha feito, com a
cabeça pesada e confusa, procurou pelo jipe e entrou, acelerando até
casa, em piloto automático, tinha de rebentar num local seguro e sem
testemunhas. Uns sons agoniantes saíam-lhe desgovernados da boca,
como que uns lamentos guturais que precisam de se libertar, e temeu
não conseguir conduzir até casa, tal era o estremecimento do seu
corpo, sempre que tentava silenciar os gritos. Parou o carro
desajeitadamente na entrada da quinta, saiu a correr e dirigiu-se à
campa de Filipe, onde se sentou agarrando nos joelhos enquanto os
sons ganhavam força e a faziam temer o pior. Tinha de abraçar o seu
cão, pensou enlouquecida, começando a esgravatar a terra com os
dedos, furiosamente. Sim, estava a enlouquecer, mas já nada
importava, apenas precisava de ver o seu Filipe e chorar agarrada a
ele. Não conseguia que as lágrimas saíssem de outra forma,
constatou, escavando mais e mais, à procura do cadáver do cão.
Umas ossadas surgiram, revelando os restos mortais já bastante
deteriorados, numa imagem que a fez parar e soltar a primeira
lágrima. O seu amor reduzido a meia dúzia de ossos, o bebé que ele
tinha morto, o seu filho, João, o cão, tudo ali morto e enterrado.
- Isabel! - um grito ao
longe chamou o seu nome, segundos antes de perder a consciência.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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