terça-feira, 30 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (3ª parte)




- Já lhe disse que acho que gosto de cães? - lançou, decidido a conversar o máximo que pudesse.
- Sim, já disse. Mas se quer a minha opinião, não saia daqui a correr e a ir adoptar um cachorro! Esses animais pequenos dão muito trabalho, precisam de muita paciência, tempo, disponibilidade, e vão sujar-lhe a casa toda. Se ainda tivesse um quintal, podia lá deixar o cão, mas...
- Como sabe se eu tenho ou não um quintal?... Eu não sei. - exclamou espantado com a observação.
- Claro que não sei, apenas deduzi pelo aspecto das suas mãos cuidadas... - apressou-se a esclarecer, fingindo-se naturalmente concentrada no corte e desviando a cabeça de forma a que ele não tivesse acesso direto à sua imagem.
João observou as suas mãos, curioso com a perspicácia dela, que já olhara tempo suficiente para si para fazer deduções. - Hum... de facto não devo fazer muita jardinagem..., mas não deixa de ser surpreendente como as enfermeiras hoje em dia são dotadas. É massagens, cortes de cabelo, investigação... - gozou, procurando o seu olhar e virando ligeiramente a cabeça, quando uma dor fina e insuportável o atacou na orelha esquerda e o fez gritar, afastando-se automaticamente das mãos da enfermeira.
- Desculpe, por favor, desculpe... - gaguejou Isabel, horrorizada com a tesourada que dera na orelha de João, que sangrava sem parar. Pressionou a ferida com a toalha, em pânico. - mas porque é que se mexeu? - berrou nervosa, com as mãos a tremer.
- Agora a culpa é minha? - gemeu, olhando-a espantado.
- Espere, vou chamar ajuda. - disse sem pensar.
- Vá mas é buscar uma agulha e linha e ponha-me isto novamente no sítio! - ralhou, com a dor a abrandar rapidamente.
- Deixe-me ver... - retirou suavemente a toalha e percebeu que o corte não era tão grave como o grito dele fizera parecer. - João, acho que não é preciso linha..., vou buscar um penso, já volto. - saiu apressada, sem sequer lavar o sangue das mãos, a sentir o coração na boca. Recordou rapidamente o que deveria fazer para parecer minimamente profissional quando lhe limpasse a ferida e colocasse o penso e procurou pelo material necessário num dos carrinhos que estava no corredor. Voltou a correr para o quarto, fechou a porta e respirou fundo. Aquilo não podia estar a acontecer... "apanha-se mais depressa um mentiroso que um cocho!", diria a Dazinha, e ela tinha sempre razão.
- Estou à espera! - resmungou, enquanto tentava ao espelho observar a ferida que parecia já não sangrar.
- Já aqui tenho tudo. - disse, erguendo uma quantidade enorme de gazes e adesivos, e obrigando-o a sentar-se novamente.
- Tem a certeza de que é preciso isso tudo?
- Quem é que é aqui a enfermeira? - exclamou, disfarçando o embaraço.
- Como quiser... - disse, levantando as mãos em desistência. - Também não vou ao "Pírulas" hoje... não há problema de ficar ridículo....- acrescentou.
Isabel olhou-o espantada, tinha tido um flash de memória sem se aperceber. Uma bolha de oxigénio formou-se no seu peito, invadindo-a de esperança, o que a fez sorrir.
- O que é o "Pírulas"? - perguntou confuso com aquela sua afirmação.
- Acho que é um bar na Praça... - respondeu, ficando estupidamente à espera que toda a memória aparecesse de repente e ele a beijasse com saudade.
- Bem, não me recordo de nada disso... - murmurou abatido com o acontecimento que o deixava mais angustiado que esperançoso. Temia ficar tolo, sem recuperar a memória de forma eficaz, apenas tendo uns vislumbres do que tinha sido. Isso seria pior que nascer de novo, como tinha sugerido Marta no dia anterior. - Pode deixar-me sozinho?
- Mas... e o resto do cabelo? - uma azia desceu-lhe pela garganta, junto com uma vontade enorme de chorar. Terminaria ali a sua relação com ele? Depois de lhe dar uma tesourada numa orelha e o deixar como um mendigo de cabelo desordenado..?
- Desculpe, tem razão, termine o corte, por favor, acho que preciso de descansar... - murmurou, sem a conseguir olhar. Sentia-se a descer a pique para uma angústia sufocante, com o desespero a tomar-lhe conta dos pensamentos.
- Eu prometo que sou rápida... - gemeu, a sentir os nervos a descontrolarem-lhe os movimentos das mãos, que cortavam a um ritmo cada vez mais rápido. - Por favor, desculpe-me, não fique chateado, foi só de raspão, eu faço-lhe um penso perfeitinho e daqui a uns dias já nem se nota...
- Não faz mal, eu também não devia ter mexido a cabeça... - murmurou abatido, sem vontade de continuar a conversar. - Eu mesmo faço o penso, deixe estar.
- Eu já tive um cão, já lhe tinha dito, era um companheiro... - fungou, tentando não se deixar levar pela tristeza de tudo aquilo, pelo desespero que via no olhar dele.
- Hum, hum... - disse, sem emoção, olhando o infinito, sem lhe prestar grande atenção. Até o simples facto de se sentir excitado perto daquela enfermeira o fazia sentir-se mal. Seria assim tão canalha, que preferia a companhia de uma estranha à da sua namorada? Porque nada fazia sentido, nada do que sentia o acalmava ou elucidava do seu passado. Deu uma última olhadela nela, e viu-se obrigado a desviar o olhar, porque a vontade que tinha era a de a abraçar.
- Pronto, está feito. - sacudiu os cabelos do pescoço e dos ombros e arrumou tudo, para disfarçar a tristeza. - Pode deitar-se agora, se quiser, deve precisar de descansar. Depois quando estiver mais bem disposto tome um banho, para tirar os restantes cabelos que aí ficaram.
João obedeceu, arrastou-se para o quarto e deixou-se cair na cama, virando-se para a parede, para esconder o choro que o começava a ameaçar.
Isabel ficou estática a olhá-lo, sem saber o que fazer. Queria tanto abraçá-lo e dizer-lhe que o amava, mas não conseguia desobedecer a César. Aproximou-se o mais que conseguiu da cama e respirou fundo.
- João? Posso ajudar? Quer que chame o médico? - sussurrou emocionada.
João manteve-se em silêncio, sem coragem para lhe pedir que ficasse e lhe desse a mão. Tinha medo, muito medo do que pudesse vir a recordar ou não, mas ela não o podia ajudar, não o conhecia, não sabia nada sobre a sua antiga vida, era uma enfermeira simpática, ponto.
- Vou embora, então... - reprimiu um soluço de choro, apertando os lábios. - As melhoras, e trate de se pôr bom e arranjar o tal cão... - deu meia volta e saiu, fechando a porta e correndo dali para fora. Não era assim que tinha imaginado a despedida, com João de costas voltadas para ela, em sofrimento, sem precisar dela. Procurou por César no gabinete do médico, mas nem esse parecia importado, tendo-se esfumaçado no ar. Chegou à rua sem se aperceber do caminho que tinha feito, com a cabeça pesada e confusa, procurou pelo jipe e entrou, acelerando até casa, em piloto automático, tinha de rebentar num local seguro e sem testemunhas. Uns sons agoniantes saíam-lhe desgovernados da boca, como que uns lamentos guturais que precisam de se libertar, e temeu não conseguir conduzir até casa, tal era o estremecimento do seu corpo, sempre que tentava silenciar os gritos. Parou o carro desajeitadamente na entrada da quinta, saiu a correr e dirigiu-se à campa de Filipe, onde se sentou agarrando nos joelhos enquanto os sons ganhavam força e a faziam temer o pior. Tinha de abraçar o seu cão, pensou enlouquecida, começando a esgravatar a terra com os dedos, furiosamente. Sim, estava a enlouquecer, mas já nada importava, apenas precisava de ver o seu Filipe e chorar agarrada a ele. Não conseguia que as lágrimas saíssem de outra forma, constatou, escavando mais e mais, à procura do cadáver do cão. Umas ossadas surgiram, revelando os restos mortais já bastante deteriorados, numa imagem que a fez parar e soltar a primeira lágrima. O seu amor reduzido a meia dúzia de ossos, o bebé que ele tinha morto, o seu filho, João, o cão, tudo ali morto e enterrado.
- Isabel! - um grito ao longe chamou o seu nome, segundos antes de perder a consciência.

(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)

Sem comentários:

Enviar um comentário