-
Acho que está a ficar perfeito! Dê uma olhadela no espelho.
João
abriu os olhos e surpreendeu-se com o ar rejuvenescido que a sua cara
transmitia. Ficava melhor sem barba, reconheceu, olhando
alternadamente para a esquerda e para a direita.
-
Obrigado, ficou muito bem. E tem razão, preciso de cortar o cabelo,
acho que nunca o usei assim tão grande.
-
Então amanhã se quiser eu corto-lho. – ofereceu-se
automaticamente, iniciando a limpeza do local para disfarçar o
embaraço.
-
Enfermeira, massagista, barbeira… que mais é que sabe fazer?
-
Também dou aulas de yoga. – confessou, ajudando-o a regressar ao
quarto.
-
Eu não sei bem o que fazia para além de ser psiquiatra…. E mesmo
isso já não devo poder exercer nunca mais, se não recuperar a
memória… - lamentou-se, sentindo uma azia nervosa.
-
Não se martirize com isso agora. A memória vai voltar naturalmente,
- disse, desejando ardentemente ter razão – com calma vai começar
a relembrar pequenas coisas. Precisa é de ter alta daqui e voltar
aos locais familiares, a sua casa, ver as suas coisas…
-
E se nunca me lembrar novamente? – perguntou-lhe com o olhar
nervoso.
-
Se nunca se lembrar, começa tudo de novo. – respondeu naturalmente
sorrindo-lhe – Já viu o que é poder renascer sem a carga de
passado que acumulamos ao longo dos anos? Ficar livre de medos
irracionais que temos, não sabemos bem porquê, esquecer as pessoas
que nos magoaram, o mal que fizemos aos outros?
-
Visto assim, nem parece tão mau… - concluiu – Não sabe nada
sobre mim?
-
Não, - mentiu, para não desobedecer às orientações clínicas de
César, que ainda queria aguardar pela recuperação natural do
doente – e mesmo que soubesse, não poderia dizer.
-
Então, se não podemos falar sobre mim, falemos sobre si. –
sugeriu, com vontade de continuar à conversa com a enfermeira. –
Pode ser?
-
Sim, claro. O que quer saber? – sentou-se no fundo da cama, ansiosa
com o facto de ser obrigada a mentir-lhe ainda mais.
-
Coisas banais… O nome já sei. É daqui de Coimbra?
-
Não, sou de Castelo Branco.
-
Ah, daí o sotaque.
-
Eu tenho sotaque? – fingiu-se ofendida.
-
Tem, mas é bonito.
-
Devia ouvir a minha mãe falar, é ainda mais bonito. – disse,
corando com o elogio.
-
É casada?
-
Não, divorciada. – engoliu uma bola de ardor que a queimou até ao
estômago.
-
Solteira?
-
Sim, tecnicamente.
-
Filhos?
-
Não. – outro ardor queimou a garganta ainda em brasa.
-
Não me diga que vive sozinha no meio de gatos? – brincou, tentando
desanuviar o ambiente. Percebera que o tema divórcio e filhos lhe
era desconfortável, e o antigo psiquiatra dentro de si parecia
dar-lhe uma palmada na cabeça avisando-o de que estava a ser
indiscreto e insensível.
-
Não. Vivo sozinha, mas não tenho gatos nem cão. Já tive um
arraçado de boxer, mas faleceu. Ainda estou a ganhar coragem para
arranjar outro. Faz-me muita falta, tenho saudades de ter uma
companhia saltitante e leal. – confessou, sentindo-se deprimir com
aquelas lembranças.
-
Eu acho que gosto de cães. Não sei se alguma vez tive um, ou se
tenho lá em casa algum a morrer de fome à minha espera… mas se
não tiver, também vou arranjar um. Pelo menos não fico a falar
para as paredes, sozinho. – gracejou, ficando a matutar no termo
“faleceu” que ela utilizara para definir a morte de um animal de
companhia. Devia gostar muito desse cão, para o considerar falecido
e não morto.
-
São uma grande companhia, de facto. – concluiu, ganhando coragem
para se despedir. Não podia ficar por ali o dia todo e tinha aulas
para dar. – Amanhã trago a tesoura?
-
Sim, por favor. – respondeu prontamente – E obrigado uma vez
mais.
-
De nada. Agora descanse. – levantou-se e acenou timidamente para se
despedir, saindo do quarto com uma sensação de estranheza nos
membros todos. Fisicamente era difícil aquela nova forma de estar
junto dele, a distância formal, a necessidade não satisfeita de o
beijar, o tratamento na terceira pessoa, e sempre a mesma energia a
rodeá-los, como um íman invisível… seria apenas ela a sentir
aquela vibração? Precisava de voltar amanhã, e de falar com o Dr
César, para arranjar uma bata emprestada, comprar uma tesoura de
cortar cabelo, enumerava distraída caminhando pelo corredor, quando
uma mão lhe estacou a marcha.
-
Menina Isabel! – exclamou Rosário deliciada por reencontrar a
namorada simpática do seu patrão.
-
Olá Rosário, como vai? – cumprimentou de volta, estranhando a
companhia espampanante e loira da empregada de João, que parecia
manter-se estrategicamente de costas, de uma forma muito indelicada.
-
Vai-se andando, como Deus quer. Venho visitar o Dr João. Já esteve
com ele? Como é que ele está?
-
Está bem. Mais animado, já se levantou…
-
E não se lembra ainda de nada?
-
Não, e por favor, não podemos baralhá-lo com muitas recordações.
O Dr César quer que ele se vá recordando naturalmente. –
explicou, receosa de que ela mencionasse algum pormenor dramático do
que tinha acontecido antes do internamento.
-
Claro, claro. Não se preocupe, vou dizer-lhe quem sou, mas não
conto nada. – sossegou-a. – Deixe-me apresentar-lhe a minha
sobrinha… a N… - parou a meio do nome, procurando por ela
confusa, sem a encontrar – Onde é que a cachopa se meteu?
-
Rosário, tenho de ir. Depois falamos, ainda preciso ir ao
apartamento buscar as minhas coisas que por lá ficaram.
-
Eu arrumei tudo. Lembrei-me que quisesse levá-las… - confessou,
corando com a insinuação de que Isabel teria de sair de casa do
patrão.
-
Obrigada, posso lá passar hoje?
-
Eu hoje não vou lá, agora já não há necessidade de ir todos os
dias… Mas fazemos assim, fica com esta chave, vai lá e depois
deixa-a na caixa do correio. – sugeriu de forma prática.
-
Perfeito. Então adeus.
-
Adeus menina Isabel. E que tudo lhe corra bem. – procurou novamente
pela sobrinha no corredor e desistiu de esperar, entrando no quarto,
não sem antes se benzer. Não poderia esquecer-se de ser cuidadosa
com as palavras.
Isabel
saiu em direção a casa dele, quanto mais depressa resolvesse aquilo
melhor. Não poderia esperar muito mais, João recuperava a olhos
vistos e rapidamente voltaria para casa. Meteu-se no jipe e acelerou,
decidida a apagar todos os vestígios de si mesma do apartamento,
apenas considerando deixar Ganesha de olho, como talismã, para o
orientar e proteger. Arranjaria outra para a sua casa, João
precisava mais que ela.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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