quinta-feira, 18 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 18 (4ª parte)




- Acho que está a ficar perfeito! Dê uma olhadela no espelho.
João abriu os olhos e surpreendeu-se com o ar rejuvenescido que a sua cara transmitia. Ficava melhor sem barba, reconheceu, olhando alternadamente para a esquerda e para a direita.
- Obrigado, ficou muito bem. E tem razão, preciso de cortar o cabelo, acho que nunca o usei assim tão grande.
- Então amanhã se quiser eu corto-lho. – ofereceu-se automaticamente, iniciando a limpeza do local para disfarçar o embaraço.
- Enfermeira, massagista, barbeira… que mais é que sabe fazer?
- Também dou aulas de yoga. – confessou, ajudando-o a regressar ao quarto.
- Eu não sei bem o que fazia para além de ser psiquiatra…. E mesmo isso já não devo poder exercer nunca mais, se não recuperar a memória… - lamentou-se, sentindo uma azia nervosa.
- Não se martirize com isso agora. A memória vai voltar naturalmente, - disse, desejando ardentemente ter razão – com calma vai começar a relembrar pequenas coisas. Precisa é de ter alta daqui e voltar aos locais familiares, a sua casa, ver as suas coisas…
- E se nunca me lembrar novamente? – perguntou-lhe com o olhar nervoso.
- Se nunca se lembrar, começa tudo de novo. – respondeu naturalmente sorrindo-lhe – Já viu o que é poder renascer sem a carga de passado que acumulamos ao longo dos anos? Ficar livre de medos irracionais que temos, não sabemos bem porquê, esquecer as pessoas que nos magoaram, o mal que fizemos aos outros?
- Visto assim, nem parece tão mau… - concluiu – Não sabe nada sobre mim?
- Não, - mentiu, para não desobedecer às orientações clínicas de César, que ainda queria aguardar pela recuperação natural do doente – e mesmo que soubesse, não poderia dizer.
- Então, se não podemos falar sobre mim, falemos sobre si. – sugeriu, com vontade de continuar à conversa com a enfermeira. – Pode ser?
- Sim, claro. O que quer saber? – sentou-se no fundo da cama, ansiosa com o facto de ser obrigada a mentir-lhe ainda mais.
- Coisas banais… O nome já sei. É daqui de Coimbra?
- Não, sou de Castelo Branco.
- Ah, daí o sotaque.
- Eu tenho sotaque? – fingiu-se ofendida.
- Tem, mas é bonito.
- Devia ouvir a minha mãe falar, é ainda mais bonito. – disse, corando com o elogio.
- É casada?
- Não, divorciada. – engoliu uma bola de ardor que a queimou até ao estômago.
- Solteira?
- Sim, tecnicamente.
- Filhos?
- Não. – outro ardor queimou a garganta ainda em brasa.
- Não me diga que vive sozinha no meio de gatos? – brincou, tentando desanuviar o ambiente. Percebera que o tema divórcio e filhos lhe era desconfortável, e o antigo psiquiatra dentro de si parecia dar-lhe uma palmada na cabeça avisando-o de que estava a ser indiscreto e insensível.
- Não. Vivo sozinha, mas não tenho gatos nem cão. Já tive um arraçado de boxer, mas faleceu. Ainda estou a ganhar coragem para arranjar outro. Faz-me muita falta, tenho saudades de ter uma companhia saltitante e leal. – confessou, sentindo-se deprimir com aquelas lembranças.
- Eu acho que gosto de cães. Não sei se alguma vez tive um, ou se tenho lá em casa algum a morrer de fome à minha espera… mas se não tiver, também vou arranjar um. Pelo menos não fico a falar para as paredes, sozinho. – gracejou, ficando a matutar no termo “faleceu” que ela utilizara para definir a morte de um animal de companhia. Devia gostar muito desse cão, para o considerar falecido e não morto.
- São uma grande companhia, de facto. – concluiu, ganhando coragem para se despedir. Não podia ficar por ali o dia todo e tinha aulas para dar. – Amanhã trago a tesoura?
- Sim, por favor. – respondeu prontamente – E obrigado uma vez mais.
- De nada. Agora descanse. – levantou-se e acenou timidamente para se despedir, saindo do quarto com uma sensação de estranheza nos membros todos. Fisicamente era difícil aquela nova forma de estar junto dele, a distância formal, a necessidade não satisfeita de o beijar, o tratamento na terceira pessoa, e sempre a mesma energia a rodeá-los, como um íman invisível… seria apenas ela a sentir aquela vibração? Precisava de voltar amanhã, e de falar com o Dr César, para arranjar uma bata emprestada, comprar uma tesoura de cortar cabelo, enumerava distraída caminhando pelo corredor, quando uma mão lhe estacou a marcha.
- Menina Isabel! – exclamou Rosário deliciada por reencontrar a namorada simpática do seu patrão.
- Olá Rosário, como vai? – cumprimentou de volta, estranhando a companhia espampanante e loira da empregada de João, que parecia manter-se estrategicamente de costas, de uma forma muito indelicada.
- Vai-se andando, como Deus quer. Venho visitar o Dr João. Já esteve com ele? Como é que ele está?
- Está bem. Mais animado, já se levantou…
- E não se lembra ainda de nada?
- Não, e por favor, não podemos baralhá-lo com muitas recordações. O Dr César quer que ele se vá recordando naturalmente. – explicou, receosa de que ela mencionasse algum pormenor dramático do que tinha acontecido antes do internamento.
- Claro, claro. Não se preocupe, vou dizer-lhe quem sou, mas não conto nada. – sossegou-a. – Deixe-me apresentar-lhe a minha sobrinha… a N… - parou a meio do nome, procurando por ela confusa, sem a encontrar – Onde é que a cachopa se meteu?
- Rosário, tenho de ir. Depois falamos, ainda preciso ir ao apartamento buscar as minhas coisas que por lá ficaram.
- Eu arrumei tudo. Lembrei-me que quisesse levá-las… - confessou, corando com a insinuação de que Isabel teria de sair de casa do patrão.
- Obrigada, posso lá passar hoje?
- Eu hoje não vou lá, agora já não há necessidade de ir todos os dias… Mas fazemos assim, fica com esta chave, vai lá e depois deixa-a na caixa do correio. – sugeriu de forma prática.
- Perfeito. Então adeus.
- Adeus menina Isabel. E que tudo lhe corra bem. – procurou novamente pela sobrinha no corredor e desistiu de esperar, entrando no quarto, não sem antes se benzer. Não poderia esquecer-se de ser cuidadosa com as palavras.


Isabel saiu em direção a casa dele, quanto mais depressa resolvesse aquilo melhor. Não poderia esperar muito mais, João recuperava a olhos vistos e rapidamente voltaria para casa. Meteu-se no jipe e acelerou, decidida a apagar todos os vestígios de si mesma do apartamento, apenas considerando deixar Ganesha de olho, como talismã, para o orientar e proteger. Arranjaria outra para a sua casa, João precisava mais que ela.

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(imagem, internet)





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