- Por favor, desculpa-me... - murmurou
desanimado sem saber o que dizer mais.
- Ela não se chama Isabel... o nome
dela é Nélia, eu já a "conhecia". - acrescentou às
informações que César lhe tinha dado.
- A culpa é minha, eu não soube
enfrentá-la, fiquei com receio de a abordar logo no quarto, por
causa do João, não o queria confundir ainda mais....
- Não... isto é tudo demasiado
complicado e cada vez me convenço mais de que o João não é o meu
futuro, o universo parece conspirar contra isto, e eu estou cansada
César... - confessou, largando uma lágrima.
- Não digas isso, por favor Isabel, o
João precisa de nós, não o podemos deixar ser enganado desta
forma! Eu sei lá o que esta tipa psicótica pode fazer? Tu tens de
me ajudar a resolver isto. - suplicou, sentando-se mais perto de
Isabel e pegando-lhe nas mãos.
- César, eu prometi ao João que lhe
cortava o cabelo hoje, trouxe a tesoura e vou cumprir a promessa. Mas
será uma despedida. Não quero, nem posso lutar contra uma loira
demasiado vistosa com intenções pouco claras. Ela entrou nisto para
ganhar, e eu já tive a minha dose de psicopatas na vida. Vou voltar
para Castelo Branco daqui a uns meses, depois de a escola arranjar
uma substituta para dar as minhas aulas, e chega. Tenho andado a
pensar em vários cenários e soluções, e este é o mais seguro
para mim, para a minha sanidade mental. - levantou-se, abraçou
César, que se mantinha calado com a surpresa e a abraçou de volta,
como se precisasse ele de ser consolado.
- Eu... não sei o que dizer... -
murmurou emocionado e a sentir-se estupidamente fraco.
- Não tem de dizer nada, apenas
prometer-me que o vai defender e ajudar, estar atento para ela não o
tratar mal, pelo menos enquanto estiver vulnerável. Depois, se ele
quiser ficar com ela já é uma escolha, e cada um faz o que quer da
sua vida. - rematou pragmaticamente e com um certo desdém na voz.
Saiu da sala, dirigiu-se à casa de banho mais perto e lavou a cara
com água fria, na tentativa de se acalmar o suficiente para
conseguir entrar no quarto de João. Olhou-se demoradamente ao
espelho, perdendo momentaneamente a lucidez, como se olhasse alguém
estranho e não se reconhecesse. Um arrepio percorreu-a dos pés à
cabeça, matar Tiago tinha sido mais fácil que o que estava prestes
a fazer, constatou com pavor. Não queria deixá-lo, queria lutar por
ele, devia entrar pelo quarto a dentro e beijá-lo, contar-lhe tudo o
que a sua memória perdera, dizer-lhe que o amava e recuperar a sua
vida. Mas o medo congelava-lhe as pernas, mantinha-a em pausa física,
como se temesse que Tiago não tivesse de facto morrido, e a
apanhasse no corredor, segundos antes de ela entrar no quarto de
João. Obrigou-se a respirar cadenciadamente, como tantas vezes
explicara aos outros nas suas aulas, sentou-se no chão da casa de
banho para corrigir a postura do tronco e assim o oxigénio chegar
mais eficazmente ao cérebro, sem se permitir chorar, porque sabia
que no momento em que começasse, teria de berrar e espernear, e ali
não era o local. Um último sacrifício para conseguir cumprir a
promessa.
João levantou-se devagar, ainda meio
zonzo das horas intermináveis que passava deitado durante o dia, e
ligeiramente enjoado com o efeito da visita matinal da namorada. Era
estranho como a Isabel parecia tão doce nos seus pensamentos, mas
pessoalmente lhe dava sensações tão negativas, matutou com culpa.
A sua vida era uma incógnita, e sabia que teria de dar algum crédito
às pessoas que diziam conhecê-lo, porque elas o iriam ajudar a
melhorar, mas os seus instintos não o deixavam confiar a cem por
cento naquela mulher em particular. Seria correto aquilo que sentia?,
perguntava-se angustiado, quando a porta abriu ligeiramente e uma voz
familiar surgiu pouco segura.
- Bom dia. Posso? - Isabel espreitou
para dentro do quarto, com uma leve esperança de que ele estivesse a
dormir e pudesse observá-lo um pouco, antes de se afastar de vez de
João.
- Olá, bom dia! - respondeu animado,
ajeitando-se rapidamente para se certificar de que estava minimamente
apresentável.
- Vim terminar o serviço. - puxou da
tesoura de dentro do bolso da bata emprestada que pedira a uma
enfermeira do piso. - Acha que é boa hora? Posso voltar depois, se
preferir...
- Não, estava mesmo à sua espera. -
apressou-se a dizer, sentando-se no fundo da cama satisfeito com a
visita prometida. - Vejo que hoje trouxe a bata, afinal não é
nenhuma maluca fugida da ala feminina. - gracejou, curioso com o
semblante abatido da enfermeira que lhe parecera reservada, mas
otimista no dia anterior.
- Muito bem. - esforçou-se por
sorrir, sem conseguir sentir de facto alegria – Vamos lá então
tratar dessa juba de leão! - encaminhou-se para a casa de banho do
quarto, colocou o banco na posição ideal e procurou por uma toalha
de rosto para colocar nas costas de João, sempre sendo observada em
silêncio, o que a deixou dormente e incomodada. - Então, mudou de
ideias? - disse, tentando acabar com o momento estranho.
- Sim, claro, vamos a isso. -
sentou-se, deixou que Marta lhe colocasse a toalha nas costas, e
ficou a olhá-la no espelho, sem saber bem porquê. - É engraçado,
parece que a conheço de outro local... já ontem tive esta
sensação...
- Não, - mentiu – isso é
impossível. - rematou sem se alongar – Agora vou só molhar
ligeiramente o cabelo para o corte ficar mais certo. - esfregou água
nas mãos e passou-as pelo cabelo de João que emitiu um som de
prazer com a súbita massagem capilar.
- Isto é mesmo bom... Marta, mas que
vocação perdida aqui nestes corredores. Porque não é massagista a
tempo inteiro? Eu ia diariamente pagar por uma massagem destas. -
sorriu de olhos fechados.
- Gosto mais de dar
injeções a maluquinhos. - gracejou, a sentir-se amolecer contra as
costas de João, que desatou a rir com a piada, descontraído pelos
dedos experientes de Isabel.
- As suas injeções são
assim tão boas? Quero experimentar isso! - brincou, abrindo os olhos
e notando um rubor súbito nas bochechas da enfermeira. - Desculpe,
não a queria ofender. - tratou de se redimir, pensando que talvez
aquela troca de palavras a pudesse estar a incomodar ou deixar
desconfortável.
- Não se preocupe, eu
estou habituada a que os meus pacientes fiquem relaxados, até na
língua. - concentrou-se em pentear o farto cabelo e analisar os
ângulos em que teria de cortar mais, para que a sua cara ficasse
proporcionalmente bem enquadrada.
- Pois, a culpa é sua.
- rematou satisfeito ao ver que ela não se deixava intimidar com a
brincadeira. - Agora por favor não se vingue no meu cabelo... não
quero ficar um Anhuca!
- Logo se vê. - deu a
primeira tesourada com prazer, retomando a concentração e
permitindo-se aproveitar o momento em que ali estavam encostados, de
forma íntima, como se nada tivesse acontecido e ainda fossem
namorados.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
Sem comentários:
Enviar um comentário