segunda-feira, 29 de outubro de 2018

"A Mala Vermelha" - Cap 20 (2ª parte)




- Por favor, desculpa-me... - murmurou desanimado sem saber o que dizer mais.
- Ela não se chama Isabel... o nome dela é Nélia, eu já a "conhecia". - acrescentou às informações que César lhe tinha dado.
- A culpa é minha, eu não soube enfrentá-la, fiquei com receio de a abordar logo no quarto, por causa do João, não o queria confundir ainda mais....
- Não... isto é tudo demasiado complicado e cada vez me convenço mais de que o João não é o meu futuro, o universo parece conspirar contra isto, e eu estou cansada César... - confessou, largando uma lágrima.
- Não digas isso, por favor Isabel, o João precisa de nós, não o podemos deixar ser enganado desta forma! Eu sei lá o que esta tipa psicótica pode fazer? Tu tens de me ajudar a resolver isto. - suplicou, sentando-se mais perto de Isabel e pegando-lhe nas mãos.
- César, eu prometi ao João que lhe cortava o cabelo hoje, trouxe a tesoura e vou cumprir a promessa. Mas será uma despedida. Não quero, nem posso lutar contra uma loira demasiado vistosa com intenções pouco claras. Ela entrou nisto para ganhar, e eu já tive a minha dose de psicopatas na vida. Vou voltar para Castelo Branco daqui a uns meses, depois de a escola arranjar uma substituta para dar as minhas aulas, e chega. Tenho andado a pensar em vários cenários e soluções, e este é o mais seguro para mim, para a minha sanidade mental. - levantou-se, abraçou César, que se mantinha calado com a surpresa e a abraçou de volta, como se precisasse ele de ser consolado.
- Eu... não sei o que dizer... - murmurou emocionado e a sentir-se estupidamente fraco.
- Não tem de dizer nada, apenas prometer-me que o vai defender e ajudar, estar atento para ela não o tratar mal, pelo menos enquanto estiver vulnerável. Depois, se ele quiser ficar com ela já é uma escolha, e cada um faz o que quer da sua vida. - rematou pragmaticamente e com um certo desdém na voz. Saiu da sala, dirigiu-se à casa de banho mais perto e lavou a cara com água fria, na tentativa de se acalmar o suficiente para conseguir entrar no quarto de João. Olhou-se demoradamente ao espelho, perdendo momentaneamente a lucidez, como se olhasse alguém estranho e não se reconhecesse. Um arrepio percorreu-a dos pés à cabeça, matar Tiago tinha sido mais fácil que o que estava prestes a fazer, constatou com pavor. Não queria deixá-lo, queria lutar por ele, devia entrar pelo quarto a dentro e beijá-lo, contar-lhe tudo o que a sua memória perdera, dizer-lhe que o amava e recuperar a sua vida. Mas o medo congelava-lhe as pernas, mantinha-a em pausa física, como se temesse que Tiago não tivesse de facto morrido, e a apanhasse no corredor, segundos antes de ela entrar no quarto de João. Obrigou-se a respirar cadenciadamente, como tantas vezes explicara aos outros nas suas aulas, sentou-se no chão da casa de banho para corrigir a postura do tronco e assim o oxigénio chegar mais eficazmente ao cérebro, sem se permitir chorar, porque sabia que no momento em que começasse, teria de berrar e espernear, e ali não era o local. Um último sacrifício para conseguir cumprir a promessa.


João levantou-se devagar, ainda meio zonzo das horas intermináveis que passava deitado durante o dia, e ligeiramente enjoado com o efeito da visita matinal da namorada. Era estranho como a Isabel parecia tão doce nos seus pensamentos, mas pessoalmente lhe dava sensações tão negativas, matutou com culpa. A sua vida era uma incógnita, e sabia que teria de dar algum crédito às pessoas que diziam conhecê-lo, porque elas o iriam ajudar a melhorar, mas os seus instintos não o deixavam confiar a cem por cento naquela mulher em particular. Seria correto aquilo que sentia?, perguntava-se angustiado, quando a porta abriu ligeiramente e uma voz familiar surgiu pouco segura.
- Bom dia. Posso? - Isabel espreitou para dentro do quarto, com uma leve esperança de que ele estivesse a dormir e pudesse observá-lo um pouco, antes de se afastar de vez de João.
- Olá, bom dia! - respondeu animado, ajeitando-se rapidamente para se certificar de que estava minimamente apresentável.
- Vim terminar o serviço. - puxou da tesoura de dentro do bolso da bata emprestada que pedira a uma enfermeira do piso. - Acha que é boa hora? Posso voltar depois, se preferir...
- Não, estava mesmo à sua espera. - apressou-se a dizer, sentando-se no fundo da cama satisfeito com a visita prometida. - Vejo que hoje trouxe a bata, afinal não é nenhuma maluca fugida da ala feminina. - gracejou, curioso com o semblante abatido da enfermeira que lhe parecera reservada, mas otimista no dia anterior.
- Muito bem. - esforçou-se por sorrir, sem conseguir sentir de facto alegria – Vamos lá então tratar dessa juba de leão! - encaminhou-se para a casa de banho do quarto, colocou o banco na posição ideal e procurou por uma toalha de rosto para colocar nas costas de João, sempre sendo observada em silêncio, o que a deixou dormente e incomodada. - Então, mudou de ideias? - disse, tentando acabar com o momento estranho.
- Sim, claro, vamos a isso. - sentou-se, deixou que Marta lhe colocasse a toalha nas costas, e ficou a olhá-la no espelho, sem saber bem porquê. - É engraçado, parece que a conheço de outro local... já ontem tive esta sensação...
- Não, - mentiu – isso é impossível. - rematou sem se alongar – Agora vou só molhar ligeiramente o cabelo para o corte ficar mais certo. - esfregou água nas mãos e passou-as pelo cabelo de João que emitiu um som de prazer com a súbita massagem capilar.
- Isto é mesmo bom... Marta, mas que vocação perdida aqui nestes corredores. Porque não é massagista a tempo inteiro? Eu ia diariamente pagar por uma massagem destas. - sorriu de olhos fechados.
- Gosto mais de dar injeções a maluquinhos. - gracejou, a sentir-se amolecer contra as costas de João, que desatou a rir com a piada, descontraído pelos dedos experientes de Isabel.
- As suas injeções são assim tão boas? Quero experimentar isso! - brincou, abrindo os olhos e notando um rubor súbito nas bochechas da enfermeira. - Desculpe, não a queria ofender. - tratou de se redimir, pensando que talvez aquela troca de palavras a pudesse estar a incomodar ou deixar desconfortável.
- Não se preocupe, eu estou habituada a que os meus pacientes fiquem relaxados, até na língua. - concentrou-se em pentear o farto cabelo e analisar os ângulos em que teria de cortar mais, para que a sua cara ficasse proporcionalmente bem enquadrada.
- Pois, a culpa é sua. - rematou satisfeito ao ver que ela não se deixava intimidar com a brincadeira. - Agora por favor não se vingue no meu cabelo... não quero ficar um Anhuca!
- Logo se vê. - deu a primeira tesourada com prazer, retomando a concentração e permitindo-se aproveitar o momento em que ali estavam encostados, de forma íntima, como se nada tivesse acontecido e ainda fossem namorados.

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(imagem, internet)

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