Um
ronco forte arrancou Margarida do seu sono reparador. Sobressaltou-se quando,
ao abrir os olhos, deu consigo enroscada no baixo-ventre de um homem que dormia
profundamente, meio sentado e descalço, por cima das cobertas. Tinha uma forte
dor nos músculos do pescoço devido à posição estranha em que tinha estado a
dormir, mas curiosamente sentia-se mais leve que nunca.
Nuno
tinha colocado uma almofada atrás da cabeça e deixara-se ficar a olhá-la e a
murmurar-lhe palavras de consolo. Margarida falara toda a noite coisas sem
nexo: cigarrilhas, adolescentes loiras, gigantes musculados - que fetiches
estranhos tinha aquela mulher, pensava ele - e um tal homem que segurava um
livro. Este intrigara-o durante algum tempo, até que Margarida se voltou na
cama revelando um pouco mais do que devia e Nuno, atrapalhado, tratou de a
tapar rapidamente, não sem antes espreitar uma vez mais e recostar-se satisfeito
com a sua indiscrição secreta até acabar por adormecer.
Estava
esfomeada e foi em silêncio à cozinha preparar o pequeno-almoço, deixando Nuno
a dormir na sua cama, naquela posição estranha que, sem ela ali enroscada, lhe
dava um ar cómico.
Colocou
o café a fazer e pôs a mesa para dois, apressando-se a ir tomar banho antes que
ele acordasse. Seria ainda mais trágico que, depois da cena do dia anterior em
que tinha colapsado de medo, ele a visse, e se tudo corresse bem, a cheirasse
novamente, acabadinha de acordar.
Lavou-se
rapidamente, vestiu-se com a roupa que levara consigo para a casa de banho, manteve a toalha na cabeça, ao
estilo das atrizes de cinema e foi espreitar o café que já devia estar pronto.
Na
cozinha, Nuno lutava com as torradas quentes e aquela cena familiar de ver um
homem adulto a praguejar de manteiga na mão trouxe-lhe uma súbita melancolia ao
se recordar de seu pai. Desde os 16 anos que não partilhava o seu espaço com
homens. Não era nenhuma freira, mas mantivera os seus relacionamentos distantes
da soleira da porta. Paranóica com os perseguidores “tarados”, Margarida não
permitia que a sua morada fosse revelada e por diversas vezes temeu estar a
enlouquecer quando se apercebia de que andava às voltas a pé nos quarteirões
vizinhos a despistar os namorados.
Mas
Nuno ali não a incomodava, talvez porque fosse polícia, tivesse 1,90m de
altura, fosse musculado e giro? Aquele homem estava a transformá-la numa fútil
palerma... Pelos menos dormia melhor, pensou. Já era um começo.
(direitos reservados, afsr)
(imagem, internet)
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